terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

Transtorno Afectivo Bipolar

Quando publiquei um dos meus posts com o título “É de pequenino…” uma amiga blogger do outro lado do oceano na “Cidade maravilhosa”, comentou no meu blog despertando a minha curiosidade para uma doença que afecta muitas pessoas em tudo mundo, o Transtorno Afectivo Bipolar. No seu blog “Para além da borda” ela publicou um depoimento impressionante feito na primeira pessoa por uma doente. Pedi-lhe que me autorizasse a publicação deste testemunho. Espero que sirva para nos sensibilizar para todos os que sofrem deste mal e que podem ser nossos familiares, amigos, vizinhos ou colegas de trabalho. Espero também que contribua para alertar pais e educadores para os sinais permitindo uma intervenção o mais precoce possivel
Um abraço

O Viajante

O mundo é bom, mas é ininteligível”.
Adélia Prado


“O que é pior: uma notícia de morte ou uma doença incurável? A pergunta martelava dentro do meu cérebro durante todo o trajecto de volta. A cabeça encostada no vidro, o corpo exausto na poltrona, olheiras e alguns quilos a menos, misturados a uma vontade quase visceral de gritar. Assim suicida, no meio de um autocarro. Eu havia dito “não é possível”, eu disse, eu falei bem alto “não há casos na família”, encontrei motivos para cada escala da minha montanha-russa e fatos “bem datados” da minha biografia. E o pior é que, no fundo, eu sabia ser verdade. Quando a gente recebe uma notícia de morte é como se o tempo parasse, subitamente as palavras perdem seus significados e se transformam em um amontoado de sons, in-su-por-tá-veis. Em instantes um arrepio varre o corpo do calcanhar à nuca, o corpo inteiro treme e logo é invadido por uma sensação de queda, os sentidos se armam e a adrenalina corre no sangue como se fosse explodir nas veias. Parece que nunca termina. A frase é repetida uma centena de vezes na cabeça até que se entenda a aridez do que é a morte. Sua terrível concretude. Mas, ainda assim, a morte é externa. Já, quando se recebe a notícia de uma doença incurável, a primeira sensação é a negação. “Há algum erro, isso não pode ser possível”, ou “você está brincando”, ou o silêncio sardónico e incrédulo de quem abrirá a porta de saída e imediatamente procurará uma “segunda opinião”. Só que, no fundo, bem no fundo mesmo da alma, a gente sabe o que é verdade e busca desculpas para si. “Por que comigo?”“, com tanta gente no mundo, por quê logo a mim?” Não há como escapar. De repente é como se a gente acordasse em uma outra vida. Aquele não é mais o nosso corpo, é qualquer outra coisa totalmente alheia e quase irreconhecível. Então vem o medo, o pavor daquilo ser “eterno”. E o horror de não poder ir embora. Assim foi quando me disseram. Depois, quando a gente já procurou a terceira e quarta opiniões, e já está ficando ridículo simplesmente não aceitar o que já é um fato, a gente fica meio que histérico e apavorado por informação. Cata em tudo quanto é canto qualquer coisa: depoimento, carta, artigo, livros de diagnóstico, sítios da Internet, quadrinhos. E fica revivendo aquele assunto por uma infinidade de dias, mais ou menos o tempo da próxima consulta. Aí, a gente toma finalmente coragem e começa o tratamento. É assim com todo mundo, e foi assim comigo também.
É claro que antes o médico já fez o histórico da sua “doença”, já sabe +/- em que tipo ou subtipo você se encaixa, quantas crises você já teve, quando a doença começou a fincar seus tentáculos e a destroçar suas emoções. Seu cérebro, embora extremamente capaz e criativo, vivo, produz neurotransmissores de forma diferente. E isso, fundamentalmente biológico, possui reflexo nas suas emoções e comportamento de tal forma que é como se você estivesse em uma montanha-russa: às vezes lá em cima, às vezes lá em baixo. Isso, para seu desespero, acontece com frequência. No meu caso, em uma questão de dias (ciclagem rápida, como chamam).
E, sendo assim, o médico, e somente ele, decide que tipo de medicação você terá que tomar continuamente (eufemismo para “o resto da vida”), e a melhor forma de te “tirar” da fase aguda (eufemismo para “mais remédios”) da crise. Eles são chamados: estabilizadores de humor. São o famoso lítio, o ácido valpróico, o divalproato de sódio, a onlazapina e a carbozepina. O primeiro é o mais usado e o indicado para as modalidades “clássicas” da doença. O segundo e terceiro para os cicladores rápidos, como a voz que vos fala.
Nada se compara à sensação de perda de autonomia que a necessidade de uma medicação de uso contínuo produz, ainda mais quando esta possui efeitos colaterais importantes. A vontade de parar é enorme. Mesmo sendo uma pessoa responsável, ciente dos riscos, parei o tratamento diversas vezes. Não preciso dizer que quase morri. Por isso sei que não há nada pior do que a doença, perto dela os efeitos colaterais são vidro, estilhaçam-se no chão. Depois soube pelo Doktor que isso acontecia também com todo mundo. Certa vez, quando eu estava visivelmente doente, numa das piores depressões que experimentei, pálida feito um papel, choramingando para falar num tom de voz ínfimo, trémula, resumindo - um fiasco - uma grande amiga me disse “Você havia melhorado. Por que parou? Você devia pensar não no fato de que você vai ter que tomar os remédios para sempre, e sim, no fato de ainda bem que eles existem para te ajudar a sair dessa”.
Guardei a frase. Havia sido a mais sensata dos últimos dez anos da minha vida. E olhando para trás, para tudo o que perdi, as pessoas a quem assustei, preocupei e prejudiquei de alguma forma, para as coisas inacreditáveis que fiz: andar no meio dos carros com um headphone aos berros nos ouvidos e cantarolando músicas de todo tipo, feliz da vida achando que nada poderia me atingir ou machucar; ficar depois da linha amarela do metro só para sentir o vento dos vagões passando em alta velocidade bater no rosto; sentir uma vontade de falar sobre tudo o que vinha à mente para t-o-d-a-s as pessoas, inclusive para as não conhecidas; atrapalhar conscientemente o trabalho alheio; fazer duas faculdades enquanto fazia dois estágios e escrevia dois livros e lia, lia, lia, dormindo pouco e me sentindo bem (a parte perigosa da montanha-russa – a que ilude, inebria, atrai, seduz e faz você perder os amigos, o dinheiro e o respeito das pessoas); para em questão de dias, parar de comer; ficar exausta e falando quase nada, saindo de casa o mínimo possível e pela garagem (para não ter que dar bom dia para o porteiro e não correr o risco de encontrar nenhum vizinho simpático); perder o interesse pelas coisas; ver as notas baixarem; ver tudo perder o sentido; cada ato tornando-se penoso e insuportável; pensar o tempo todo em morte e planejar que ela aconteça, e rápido (a parte perigosa da montanha russa – a que te faz perder o emprego, o estudo, e, falando em bom português, podendo te levar ao suicídio). Não quero nada disso para mim, quero experimentar a vida como ela é, não quero lentes.
E para que isso ocorra, tenho que ser forte e acordar forte todas as manhãs e saber que embora minhas mãos tremam e me impeçam de tocar piano (uma das minhas paixões), hesitando como se eu tivesse oitenta anos, tenha falhas de memória e uma gastrite, nada é comparável ao desespero de uma crise e da vontade de sair dela. Ainda que, por mais paradoxal que seja, já que não é uma doença rara, seu tratamento custe muito caro e uma crise me possa levar o emprego. É muito melhor acordar todas as manhãs e ver a beleza de um dia de sol.
Tudo bem que me consola o fato de que Bethoven, Van Gogh, Faulkner, T. S. Elliot, Virgínia Woolf, Joyce e outros também sofressem do distúrbio e tenham, apesar disso, e melhor, com isso, deixado para a humanidade obras incríveis. Sei que se todos eles, e todos nós, pudessem, e pudéssemos escolher, não o escolheriam, e não escolheríamos, e talvez preferissem/ preferíssemos não deixar nada tão brilhante assim se isso lhes/ nos custassem, como custou, partes importantes de suas/ nossas vidas.
Assim como não concordo com absurdos proferidos por pessoas cuja acuidade mental deve ser mais ou menos próxima a de uma trepadeira, que insistem em dizer coisas do tipo: -ah, conheci um bipolar que não era assim como você; ou, -você deve fazer uma forcinha e parar com os remédios, você pode viver sem eles; ou aqueles que pensam que somos perigosos e incapazes. Pois fiquem sabendo que a vivencia existencial de uma pessoa é única, portanto, a forma como a doença se manifestará também é única; e embora isso não seja regra geral, muitos dos mais sensíveis e inteligentes membros da sociedade são portadores dela e não raro perdem suas vidas desnecessariamente por esse tipo de covardia moral que é o estigma. Fazendo com que muitos jamais procurem tratamento por medo de assumir, até para si próprios (como aconteceu comigo), que sofrem de uma doença mental, pois sabem intimamente que a sociedade que os circunda, inclusive a família, não irá aceitar e rejeitará ter que oferecer para esses que destoam algo que ela não pode dar, porque não entende. E não entendendo, simplesmente, abandona.
Eu nunca pensei que falaria sobre isso. Na verdade, sempre fiz por negar sua existência, por mais de dez anos fingi nada saber a seu respeito. Achei que, negando-a sempre, ela acabaria por me deixar. Não deixou: agravou-se. Meu desempenho intelectual, mesmo com a doença e as consequentes depressões, era e é acima do normal, mesmo eu sabendo que não estava rendendo nem um terço da minha capacidade. E ficava melhor e mais visível nas fases de hipomania/ mania quando minha timidez diminuía e a capacidade de expressão aumentava. E eu fui me iludindo, achando que mantinha algum controle, que as emoções negativas e positivas jamais teriam autonomia sobre mim, vendo os espaços de tempo entre uma fase e outra diminuindo, a intensidade aumentando, até que ficou incontrolável. Quase larguei a faculdade no penúltimo período, relaxei nos estágios, emagreci dez quilos, quis me matar diversas vezes. E por mais que me saltasse aos olhos que algo de profundamente errado estava acontecendo, ainda assim eu me recusava a procurar ajuda por medo de ter a minha capacidade posta em xeque. Essa era a parte lúcida, a única, da minha mente, que ainda me protegia. No entanto, essa mesma mente se recusava a perceber que a minha vida era o que estava realmente em xeque. Minha capacidade intelectual está preservada. Completamente. Então, percebi que ao calar a doença, evitar ao máximo que as pessoas soubessem era uma forma covarde de agir. Quantos como eu precisarão de dez anos de sofrimentos inenarráveis para procurar tratamento? Não adianta fugir, como eu disse, não há escapatória. Eu fugi da luta enquanto pude, erradamente. Não falar, não só é uma forma de ser conivente como é um atentado contra a minha dignidade, contra tudo o que eu acredito enquanto valores. Eu, que jamais julguei ninguém. Eu, que fui criada para amar meus semelhantes e a mim mesma acima de todas as coisas. Isso está, e estará, irremediavelmente acima de todo e qualquer preconceito. E toda a vez que eu o fizer estarei prejudicando outros na mesma situação, fragilizados por uma doença devastadora se não controlada, que tem tratamento. E me juntarei aos covardes que me estigmatizam. Não. Somente quem já viu a morte de perto sabe o tamanho de seu poço. Não. Renuncio ao confortável silêncio dos meus comprimidos e da minha casa, à minha arrogância, à minha pretensão para não jogar no lixo minha essência e meu carácter. Não sou e jamais serei uma avestruz. Prefiro dar a cara para bater.
E cá estou, incólume, em casa, formada e já sem emprego, contando essa história para vocês”